terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O cantor

Em “My Way” sentiu uma tontura mas cantou até o fim. Há vários dias sentia-se mal e sua magreza já chamava atenção. Alimentava-se mal e até o maestro já tinha-o chamado atenção. Hilton não conseguia mais acompanhar o pique da orquestra. Quase todas as noites havia bailes e o carnaval aproximava-se. No último baile, em “Besame Mucho” tombou desmaiado, assustando os idosos do baile da terceira idade da Sociedade Campestre Estrela.
Acordou no hospital. Ainda não tinha amanhecido. O médico diagnosticou falta de alimentação e anemia profunda. O maestro deu-lhe uma licença e Hilton voltou para casa. A mãe recebeu-o cheio de caldos e comidinhas. Preocupou-se com o estado do filho. O pai aconselhou-o a comer mais. Fazia tempo que não parava em casa e aqueles carinhos todos foram muito bons. Carinho de mãe não é igual.
Fizera todos os exames. A pele estava coberta de manchas. Usava camisas de mangas compridas para não verem, mesmo que a temperatura fizesse 40 graus. O último médico, sem um diagnóstico conclusivo, pedira um exame de HIV. Um medo que tirava-o o sono e o resto do apetite tomara-lhe conta. Tivera algumas relações homossexuais, algumas até irresponsáveis, mas sempre se cuidara.
O envelope tremia em suas mãos. O suor banhava-o. A moça do laboratório sabia o resultado que havia naquele envelope. Convidou-o a uma outra sala. Dera-lhe um calmante. Hilton tremia e uma sensação de solidão tomara-lhe o espírito. A moça, muito carinhosa, conversou longamente com ele. Passou-lhe uma folha com nome de alguns médicos e o que ele devia fazer nos próximos dias. Hilton ouvira e concordara com ela. Iria procurar o melhor médico. Não era o fim do mundo. Ninguém morria mais de Aids. Morria de ignorância. De repente, uma onda de tristeza tomou conta e iniciou um choro longo. Precisava falar, se não explodiria. A moça que não sabia o nome ouviu tudo e abraçou-o. o choro aliviou-lhe a tensão e levantou-se para ir para casa. Prometeu ligar para a moça. Para Cláudia. Saiu.
Andou algum tempo até pegar o ônibus mas antes parou num mercadinho. Chegou em casa sorridente. A mãe estranhara-lhe o bom humor. Mas nada comentou. Hilton pedira para não ser incomodado porque iria dormir um pouco. Tomou um banho demorado e trancou-se no quarto. Escreveu uma carta e abriu a janela. Ventava. Despediu-se do vento. Picotou o exame em muitos pedaços e jogou-os pela janela. A carta fora levada pelo vento para debaixo da cama. Pegou o veneno para rato e misturou num copo de suco que a mãe preparara com carinho. Tomou tudo de um gole. Aos poucos, tudo em seu estômago passou a queimar. Um grito foi ouvido do quarto. A mãe não tinha certeza se ouvira realmente um grito mas bateu na porta do quarto. Ouviu uns gemidos. A porta não estava trancada. Abriu. Hilton retorcia-se no chão. Não conseguia falar. Estava morrendo. A mãe gritara pelo pai, que veio andando lentamente, porém aflito. Deparou com uma cena de Pietá no quarto do filho. Fez um esforço sobre-humano e correu para o telefone. Uma ambulância. Quando os para-médicos chegaram ainda tentaram uma lavagem estomacal mas o veneno fora mais rápido. Os gritos de uma dor atroz foram o último canto de Hilton. Os pais ficaram em estado de choque. Fecharam o quarto e foram passar um tempo com o filho mais velho em outra cidade.
Alguns meses mais tarde, o quarto de Hilton fora reaberto pela cunhada, que encontrou a última carta debaixo da cama. Abriu e leu:
“Queridos pais,
Perdão. Desisti de viver. Amo vocês. Queria ter sido o engenheiro que papai queria. Queria ter sido o advogado que mamãe queria. Mas fui estudar canto, que era o que queria. A vida me levou por caminhos que me mostraram o lado negro das coisas. Não vou mais viver. Por favor, não sofram. Apenas desisti de viver. Com amor, Hilton.”
“Egoísta” sussurrara a cunhada. Guardou a carta no bolsa e mais tarde queimou-lhe. Não faria os sogros sofrerem mais. Para ela, todo suicida era egoísta. A família ainda sofria. A casa foi vendida alguns meses mais tarde.

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