terça-feira, 16 de outubro de 2007

Dores das dores



A casa, ou melhor, os restos dela, não era aberta há anos. Um cheiro de morfo dominava todo o ambiente. Cheiro do passado. Maria das Dores empurrou a porta e quase sufoca-se com o ar morto há anos. Puxou um lenço da bolsa e protegeu o nariz. Foi aos poucos percorrendo os cômodos e a memória. Abriu as janelas. O sol foi dissipando as trevas. Em cada ambiente viu um fantasma. Havia um banco velho. Sentou-se. Era o banco de sua avó. Avó que fora massacrada pelo seu avô, assim como todas as mulheres de sua família foram massacradas por seus maridos e homens, donos absolutos de seus corpos e mentes. Ela fora massacrada por vários homens.O corredor dava na cozinha. Dorinha menina, se viu brincando naquele espaço, ouvindo os ruídos do pai montado em sua mãe, que chorava sempre naqueles momentos. Ela não entendia, naquele tempo, que o pai maltratava a mãe no sexo quando fechavam-se no quarto. A mãe sempre dizia que não era nada às crianças. As marcas sempre denunciavam o contrário e Dorinha só começou a entender melhor quando o pai começou a tocar em suas formas e a mãe apareceu cheia de marcas roxas. Lágrimas rolaram e misturaram-se à poeira que trouxera da estrada no caminho. Os gritos das irmãs sendo abusadas na noite e o choro da mãe a angustiaram mais. Suas irmãs eram mais velhas. Fugiram de casa numa noite. Levavam somente a roupa do corpo e a coragem. O paradeiro ninguém sabe, ninguém viu. Talvez tenham ido para a estrada e pegaram carona no destino, como ela mesma fizera anos depois. Passado chegando. Levantou-se e foi até a sala. Debrussou-se na janela da sala, onde ficava espiando o pai bêbado voltar, para esconder-se com as irmãs no quintal. Ouviu os gritos, seus gritos de socorro, sendo arrastada para a cama da mãe, que a encontrou ainda ensangüentada, em estado de choque aos 11 anos. Não era nem moça e a menstruação nem chegou a vir. Só meses depois da barriga E a barriga cresceu. A vergonha calada no signo do medo. Os meses sem sair de casa, longe dos olhares estranhos e curiosos. A dor. Dorinha gritando, sendo partida ao meio e a criança que nasceu morta. Morta de dores. Um lindo bebê que não sobrevivera a sua origem. O filho que das Dores perseguiu a vida inteira, nas mãos dos muitos homens que teve, primeiro nas estradas, depois nas casas. Nada foi previsto quando a mãe mandou-lhe embora. Não queria ir, apesar de tudo. A mãe fez-lhe uma trouxa e mandou seguir o caminho das irmãs. Que procurasse por elas e mandasse notícias. Busca inútil. Dona Maria das Chagas nunca reviu. Nos anos em que Dorinha virou Dora, escreveu , mandou endereço e nem mesmo quando o pai morreu bêbado e afogado, a mãe quis ainda continuar naquela casa perdida no sertão e não foi morar com a filha. Passaram 20 anos. Os parentes mantiveram a casa. A saudade da mãe e das irmãs eram terríveis. Não tinha mais ninguém no mundo. Todos morreram. Talvez suas irmãs estejam mortas também. Estava vendo-as também. Via todo mundo na sala como antes quando a mãe fazia renda de bilro. Um dia estaria morta e também ali, naquela sala. Apenas um fantasma do passado. De volta pra casa.

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