quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Mário

Mário saiu andando sem rumo. Estava em estado de choque. A enfermeira ainda tentou segui-lo mas Mário caminhou rápido. Não podia acreditar. Aquele dia não dormira bem. Tivera pesadelos. Acordara pensando no exame de HIV que fizera uma semana antes. Já repetia esse exame há dez anos e nada tinha acontecido. Sempre preocupara-se em fazer o exame em sigilo. Mas acordou com um estranho pressentimento. Esperou as 15 horas nervosamente. Fora no laboratório buscar e a atendente não achara o exame. Pedira um tempo para procurá-lo. “O Senhor pode responder uma pesquisa com nossa assistente social? Era praxe nesses exames falara a enfermeira. Mário, meio a contragosto, resolveu ir até a assistente social. Entrou e sentou e foi atendido por uma mulher meia idade. “Temos aqui seu exame Sr. Mário Augusto...” Nesse momento Mário começou a deixou de ouvir o mundo externo. A assistente foi explicando os procedimentos para pacientes soropositivos e o que ele deveria fazer. Mário não terminou de ouvir. Levantou-se abruptamente e saiu quase correndo de lá. Não ouviu os gritos da enfermeira. “Vergonha”. Era esse seu pensamento. Pensou na família. A mãe sofreria muito se soubesse, mais que antes, quando descobriu a homossexualidade do filho e que dizia que aquilo era uma doença, coisa do demônio. Ainda bem que o pai já morrera. Um turbilhão de pensamentos tristes tomaram seu pensamento enquanto caminhava sem rumo. Não entendia como fora se contagiar pois sempre usara preservativos. Mas agora era tarde. Passado é passado. Sem notar, chegara a estação de trem. Sentara num banco e ficou perdido em seus pensamentos. A noite foi caindo, e Mário continuara no mesmo banco, ainda perdido em si mesmo e em busca de uma solução para o seu problema. Ouviu o barulho de mais um trem chegando. Pulou a catraca e jogou-se na linha férrea. Uma mulher gritou ao observar a tragédia. O corpo ficou irreconhecível. A polícia fora chamada. Sem reconhecimento da vítima. A linha ficaria interditada até todos os restos mortais serem recolhidos.
Mário nunca mais voltou para casa. Desapareceu para sempre. Os parentes procuraram dias, meses. Foram até ver o corpo de um rapaz que jogara-se na linha férrea mas não reconheceram-no. Mário jamais praticaria o suicídio. Tinha defeitos mas era evangélico, e freqüentava a igreja todos os domingos. A mãe adoecera. Mário entrou para mais uma lista de desaparecidos. Seu retrato ocupava agora um lugar de destaque em sua casa. Sua mãe chorava todos os dias sua ausência.

Suicídios

Ontem me deparei com um pedido que me surpreendeu: parar de escrever meus contos suicidas. Explico. Estou escrevendo uma série de contos que versam sobre suicídios. Não acredito que possa ser um incentivo mas estou pensando no caso. Minha infância foi marcada pela tentativa de suicídio de uma vizinha. Lembre que era criança e fui espiar pela janela a tentativa de salvar uma moça que tinha tomado veneno. Minha mãe quem socorreu. Ela escapou mas nunca mais foi a mesma. Anos depois, morando em Blumenau, aliás, uma das cidades com maiores índices de suicídio do Brasil, me deparei com dois casos. Um dia, no supermercado, e toca o celular. Era a Maria aos prantos. Me contou que sua Luzia tinha chegado em casa e encontrado o filho mais novo enforcado. Foi um choque pra mim, que fui no velório e evitei a todo custo olhar o defunto. Fiz minhas orações e sem querer olhei. Perdi uma noite de sono. Não conseguia dormir. O pensamento que tinham cortado a língua dele para fechar a boca não saía da minha cabeça. Algum tempo depois minha prima pula do décimo andar e voa para a eternidade. Quero deixar bem claro que não defendo o suicídio, ao contrário. Acho de uma extrema fraqueza e covardia. Só quem já viveu num ambiente em que houve um suicídio sabe a ressaca de tristeza que fica no ambiente e o longo tempo que dura isso.
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quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

LISA

No penúltimo diagnóstico, teria dois anos de vida. Lisa ficara muito abalada. O câncer fora fulminante em sua vida. Tinha 27 anos e um filho de cinco anos. Estava separada há pouco mais de um ano e tinha uma relação de amizade com seu ex-companheiro. Mas a dor nos últimos dias piorara e tornara-se completamente dependente da morfina. Nos últimos dias, recebera a visita de alguns parentes a pedido da mãe. Queriam ajudá-la mas ela foi categórica em recusar qualquer ajuda. Não queria separar-se do pequeno Antônio e afastara qualquer hipótese de mudar-se para o hospital. Continuaria a visitar a mãe todos os dias e a levar seu filho à escola. E assim foram se passando os dias. As doses de morfina foram ficando cada vez maiores. Mais uma visita ao Dr. Mendes e tinha agora seis meses de vida segundo o último diagnóstico do médico. A idéia do fim não a assustava e sim ficar sem o filho. Então resolveu não separar-se nunca mais do pequeno Antônio.
Acordara naqueles dias com dores quase sem controle mas levantou-se e acordou o filho. Teriam um dia bonito. Preparou o café do filhote e ajudou-o a vestir-se. O menino não queria usar o agasalho mas insistira pois estava esfriando naquela época do ano. A criança ficara muito feliz quando soubera para onde iriam. Brincaram durante horas nos brinquedos e depois foram a um shopping center. Compraram muitos presentes para o natal que aproximava-se. Lancharam. Já estava anoitecendo quando pegaram um táxi e foram para casa. Estava tarde e logo que chegaram, Lisa mandou seu filho preparar-se para dormir. O menino obedeceu. A dor estava tomando Lisa por completo e ela começou a preparar um coquetel para Antônio dormir. Misturou vários de seus remédios com morfina. Antônio bebeu tudo sem reclamar. Achou o gosto ruim e fez algumas caretas. A mãe ainda contou uma história antes que a criança adormecesse.
Lisa escreveu algumas cartas e uma especial para seu ex-marido. Deixou-as sobre o piano e foi para casa materna. Sabia que a mãe chegaria tarde e que era dia de bingo com as amigas. Tinha a chave e entrou. Percorreu vários cômodos onde crescera e foi despedindo-se de cada um. Pegou alguns álbuns e folheou. Algums lembranças e lágrimas surgiram. Observou que mãe ainda conservava um porta-retratos do dia de seu casamento. Deixou uma carta ali. E foi para o banheiro.
Passavam das 23 horas quando Dona Clóris chegou em casa. A noite esfriara e estava morta de cansada. Não fora uma noite de sorte no bingo. Encontrou as luzes acesas e viu os sapatos de Lisa na entrada e chamou pela filha. Nenhuma resposta. Saiu procurando Lisa e viu que havia alguém no banheiro pois estava com a luz acesa e a porta fechada. Chamou mais uma vez pela filha. Nada. Bateu mais forte na porta. Silêncio. Tentou forçar a porta mas sua bursite não permitiu. Saiu apressada e pediu ajuda ao um vizinho. Enquanto o vizinho tentava arrombar a porta, reparou em um envelope branco junto ao retrato do casamento da filha. Pegou-o e um estranho pressentimento tomou-a. Nesse momento a porta do banheiro foi arrombada e o vizinho deu um grito. Dona Clóris parou, congelada na porta. A filha jazia, caída no solo do banheiro. Cortara os pulsos e o sangue já não jorrava mais nos pulsos. Desmaiou.
O pequeno Antônio dormiu para sempre. O pai chorou longamente sobre o corpo do filho e não quisera ler a carta que Lisa deixara. Não a perdoava. Fora um bom marido e sofrera muito com a separação, que ela pedira. E agora aquele ato. Aquela violência. Precisaram medicá-lo para que o enterro do menino fosse feito. Os presentes de natal ficariam esperando na árvore.
Lisa fora velada pela mãe e alguns parentes. Não fora enterrada junto ao filho como era seu último desejo. Mas estaria para sempre com ele. O que foi em vida, seria em morte.

A NOIVA VOADORA

Quando Alice decidiu saltar, estava certa que aquele seria seu último vôo. Vestira-se com seu vestido de noiva e pulara do décimo andar daquele edifício de garagens da Avenida Beiramar. Durante a viagem até se esbagaçar-se no solo, Alice, a Alicinha como sua mãe chamava, pensou somente no Carlos, seu grande amor, seu eterno amor. Nada mais importava naquele momento, se não seu amor por Carlos. Pensou como seu amor iria sentir sua falta e a amaria para sempre. Seria sua eterna noiva. Lágrimas e o vento, que bateu violentamente no seu rosto durante a queda, manchara-lhe a maquiagem. No chão, o sangue cobria o rosto por completo mas conservara-se sem fraturas múltiplas, ao contrário do seu corpinho, que muito fora castigado pela queda. Caiu no meio da calçada, fazendo uma grande poça de sangue. Os paramédicos foram logo chamados mas nada puderam fazer. Cobriram o jovem corpo mas tiveram o cuidado de limpar o lindo rosto de Alice, que conservara uma expressão de paz. Havia um sorriso ainda em sua boca. O vestido, antes branco, tornara-se todo vermelho, representando quem sabe todo o amor de Alice por Carlos. Ninguém soubera a identidade da noiva voadora, como foi denominada Alice e seu corpo foi conduzido ao Instituto Médico Legal, onde foi identificado no dia seguinte por seus pais aflitos com seu desaparecimento. A filha sumira e procuraram em todos os hospitais, e por fim, no último lugar onde não queriam estar, acharam a filha. Sabiam porque a filha tinha feito aquilo. O noivo havia terminado o compromisso selado um ano antes. Carlos, muito educado, pediu para conversar com o pai de Alice, e contara-lhe seus motivos. Apaixonara-se por uma colega de trabalho e ela engravidara. Iria casar em poucos dias e não poderia mais esconder esse fato. Devolveu a aliança e deixou uma carta para a ex-noiva. Não tinha coragem de falar-lhe cara a cara. Pedia-lhe perdão e que compreendesse. O amor acabara há algum tempo. Tentara contar. Queria desmanchar o casamento com Alice que se realizaria em poucos dias. Não iria mais casar com ela e sim com outra.
Alice recebera a carta e nada dissera. Trancara-se em seu quarto por alguns dias. No primeiro dia, chorou muito. Mas não tinha raiva do noivo, ou melhor, ex-noivo. Ela não importava-se da outra estar grávida. Ela casaria com ele assim mesmo. Carlos não atendera seus telefonemas. Vestida com o vestido do casamento, pegou um táxi e foi ate a praia. Ninguém notou que saíra de casa. Ficou andando horas e horas, até que decidiu voar. As pessoas estranhavam a jovem vestida para casar andando pelas ruas mas ninguém impediu-a de subir ate o décimo andar, de onde pulou.
Carlos casara naquele mesmo dia, pela manhã.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Saudades de SP

Esses últimos dias foram divididos entre observações e estudos. A volta para Fortaleza foi cansaço puro pois perdi meu vôo e tive que pernoitar no aeroporto de Cumbica. Não quis incomodar ninguém. Fiquei zanzando como uma barata tonta, matando tempo.Encontrei até o Pierre vindo de Assunção. Aos poucos vi as pessoas deitando-se sobre os bancos sem a menor cerimônia. Estava exausto e fiz a mesma coisa. Fiquei me lembrando dos últimos dias: da música clássica nos trens urbanos, da atenção da Renata, do encontro no Consulado Cearense, do meu guarda-chuva novo quebrado, das provas e medos. Mas o último dia foi de muito cansaço mesmo, isso sem prever que eu perderia o vôo. Fazia anos que não tomava café da manhã no Macdonalds. Igual ao europeu. Na volta, ainda encontro a linda da Sabrina no avião e pergunto sobre seu eterno namorado que mora na Espanha. Mal cheguei em Fortal, já tive que ir para Iguatu. Fui dormindo. Cheguei e já era hora da minha palestra. Todos muito gentis. Tendências de moda foi o tema. Acabei duas horas depois e já tomei o rumo da rodoviária. Como tinha tempo, parei num bar e comi algo. Fiquei ouvindo uma cantora. O som era péssimo. Mas a moça se esforçava. Fui para a rodoviária e o ônibus atrasou-se. Um cara veio pedir dinheiro e como neguei, quase apanho. E ainda me chamou de racista. Mas racista só porque não quis dar uma esmola. Ninguém merece. E na volta, ainda fui ao lado de um roncador. Ninguém merece mesmo. Saudades de São Paulo.